segunda-feira, 31 de agosto de 2009

História da Didática no Brasil.

CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DA HISTÓRIA DA DIDÁTICA NO BRASILCASTANHO, Maria Eugênia L. M. – PUC-CampinasCASTANHO, Sérgio Eduardo Montes – UNICAMPGT-04: DidáticaA dificuldade para se traçar algo como uma história da didática começa pela própriaquestão da didática em nossos tempos. Ainda há lugar para falar em didática nacontemporaneidade?A palavra didática ingressa no léxico português em meados do século XIX. Mas antes dissoela ingressou no léxico europeu (no qual se inclui Portugal, com certeza), já que Hamiltondata sua aparição no vocabulário latino (que era o da Europa ocidental) de 1613. Segundoesse autor (HAMILTON, 2001)1, a didática é uma das cinco palavras, ao lado de Syllabus,aula ou classe, catecismo e currículo, que entraram para o léxico educacional europeu noperíodo de cem anos, ou seja, do início do século XVI ao início do século XVII, quedenotam a passagem de um ambiente de aprendizagem para um de instrução, configurandouma reviravolta educacional que ele designa com a expressão “virada instrucional”.A importância da aparição desses termos em textos tratando de educação é que ela apontapara uma nova direção.Vamos ter, nesses primórdios dos tempos modernos, fenômenosimportantíssimos na área da educação. O primeiro de todos é que se passa propriamente àfase da escolarização. Para Hamilton, a transmissão cultural se deu, antes da escolarização,pela socialização e pela “educação”, esta sendo uma forma já institucional porém ainda nãoespecificamente “escolar” de aculturação. A escola é um fenômeno moderno. Guy Vincent,num registro semelhante porém não idêntico ao de Hamilton, leva em consideração umapluralidade de “formas” educacionais e entre elas a “forma escola” ou “forma escolar”. DizVincent:“(...) uma forma escolar, ou seja, um local separado de todos os outros,compreendidos os locais de culto; um espaço organizado de maneira a que osmestres e os escolares possam (...) cumprir os seus deveres; um tempo regrado porum emprego do tempo que é princípio de ordem mais que de eficácia; um mestrelaico pelo menos em sua função (antes mesmo que o ensino fosse laicizado);1 V. também: HAMILTON, 1992.2exercícios pelos quais a conformidade aos princípios conta mais que os própriosresultados; enfim meios de manter a ordem escolar” (VINCENT, apud BOTO,2004, p. 474).O que se está a ver, em todas essas considerações, é uma instituição nascida com amodernidade e que teve em Comênio seu grande sistematizador, especialmente naDidactica Magna (1985). O que a escola moderna é, ela o deve em grande parte, em termosde sistematização pedagógica, aos delineamentos de Jan Amos Comenius. SegundoGilberto Luiz Alves,“(...) o educador morávio pressupunha uma organização para a atividade de ensino,no interior da escola, que visava equipará-la à ordem vigente nas manufaturas, ondea divisão do trabalho permitia que diferentes operações, realizadas por trabalhadoresdistintos, se desenvolvessem de forma rigorosamente controlada, segundo um planoprévio e intencional que os articulava, para produzir mais resultados com economiade tempo, de fadiga e de recursos” (ALVES, 2001, p. 83).Ora essa racionalidade escolar – que nesse ponto equivale à busca de ordem atribuída porVincent, mas que Alves vai adiante e estabelece sua determinação pela fase manufatureirada produção, – essa estrutura ordenada da escola pressupõe agentes especializados (osprofessores, que, mesmo podendo ser religiosos em sua confissão, são laicos em suafunção, na anotação precisa de Vincent), pressupostos, métodos e procedimentos próprios(a didática, que para Comênio era a “arte universal de ensinar tudo a todos”), recursosinstrumentais adequados (dentre os quais avulta o manual didático), além de espaçoadequado, embora quanto a este último requisito vá acontecer um longo processo depassagem do nomadismo ao sedentarismo escolar e, neste, de uma arquitetura genérica parauma específica levando em conta inclusive os princípios de higiene.Por aí se vê que estamos diante de um fenômeno realmente novo na modernidade, quepodemos caracterizar pelos seguintes pontos:1. Passagem da fase de aprendizagem para a instrucional no âmbitoeducacional, implicando um forte acento da heteroformação em detrimentoda autoformação da fase anterior.2. Formação de agentes educativos com características funcionais específicas,os professores, responsáveis pela condução do processo instrucional.33. Criação de dispositivos pedagógicos formal e materialmente distintos eadequados à nova fase, como o plano de estudos, a seqüência instrucional(currículo), o grupo de estudantes com algum grau de coesão interna(classe), o corpo de saberes e práticas para levar a docência (subordinante) ea discência (subordinada) a bom termo – e aqui se está já falando da didática– e os recursos necessários ao funcionamento ótimo (ou “econômico”, navisão de Comênio) do todo, a saber, a locação física (escola) e as máquinasinstrucionais (manuais didáticos).Neste ponto podemos deter-nos e separar o que importa para esta comunicação: a didáticasurge na modernidade fazendo parte da “maquinaria escolar” responsável pela ampliaçãoda transmissão de saberes mínimos para segmentos mais amplos da população, nomomento em que o modo de produção feudal entra em declínio e se inicia a transição parao capitalismo.Acontece que do início desse processo aos dias de hoje passaram-se quinhentos anos. E nãoé possível pensar que a sociedade e suas instituições tenham ficado paradas. Ao contrário,fundas alterações ocorreram nas relações sociais, abrangendo o conjunto da sociedade.Evidentemente, a escola e sua maquinaria sofreram o influxo dessas mudanças. E é nesseponto que intervém a questão dos métodos de ensino. Em outras palavras, a questão dosmétodos no âmbito da didática.Se esta apareceu para dar conta de uma racionalização do processo de transmissão desaberes – principalmente dos chamados “saberes elementares”, necessários à inserção naestrutura produtiva mais complexa, – o que predominou, em termos de métodos, por muitotempo, foi o do protagonismo professoral. Se a virada instrucional representouprecisamente esse momento de mudança do primeiro plano da aprendizagem para o ensino,o professor passou a ser o agente por excelência do processo. Em todas as variantesmetodológicas da didática surgidas até ao século XIX há uma invariância: o protagonismoprofessoral. Apesar do esforço teórico de um Leonel Franca (1952), por exemplo, paraatenuar esse centralismo docente no método pedagógico dos jesuítas, o certo é que o RatioStudiorum2, de 1599, que centraliza as normas desse método, deixa bem clara a exigência2 A questão do gênero de Ratio Studiorum é controvertida. Uns empregam o feminino: a Ratio..., fazendo aconcordância com o gênero latino de ratio. Outros, entre os quais nos incluímos, preferem o masculino,pensando na tradução do étimo para o português: o Ratio... De fato, se consultarmos o Torrinha, veremos que4da unidade de professor, da unidade de matéria e da unidade de autor para o êxito doensino. Outra metodologia moderna, a de La Salle, o criador do chamado métodosimultâneo, também mantinha a prevalência magisterial. Mesmo o método mútuo, oumonitorial, desenvolvido por Bell e Lancaster em fins do século XVIII, inícios do séculoXIX, mantinha o princípio da condução do ensino pelo professor, muito emboradistribuísse “tarefas” de docência imediata para os alunos mais adiantados de cada classe,os monitores, que porém tinham um âmbito de intervenção restrito à difusão do previstopelo professor, que continuava o centro de planejamento do processo pedagógico. Emsuma, uma didática atenuada do magister dixit apenas do ponto de vista operatório.Ademais, era uma exigência das circunstâncias em que surgiu o método, no bojo darevolução industrial que inculcava a necessidade da inserção rápida de expressivoscontingentes humanos ao mercado de trabalho, com um mínimo de instrumentação, ou seja,de absorção dos chamados “saberes elementares”. As salas de aula de ensino mútuochegavam a comportar mil alunos3.Aí estava o problema do método, um problema histórico. Não se tratava, como muita teoriapedante quer fazer crer, de procurar “o melhor” método para promover o mais eficiente, ouo mais “construtivo” ensino. Tratava-se, sim, de uma adequação às exigências sociaishistóricas. Manacorda é de uma clareza meridiana:“O problema do método ou da didática é o fastidioso problema pedagógico desteséculo e suas soluções não são isentas de pedanteria, também nos maiores autores:mas como não ver que este é o problema real, decorrência inevitável da evoluçãohistórica? Desde que a instrução tende, embora lentamente, a universalizar-se e alaicizar-se, mudando destinatários, especialistas, conteúdos e objetivos, o “comoensinar” (até as coisas mais tradicionais, como a preparação ‘instrumental’ ou‘formal’ do ler, escrever e fazer contas) assume proporções gigantescas e formasnovas; tanto mais se o problema do método se entrelaça com o problema dos novosconteúdos da instrução ‘concreta’, que surgem com o próprio progresso das ciênciase com sua relativa aplicação prática” (MANACORDA, 1989, p. 280).na acepção 4 do termo encontram-se mais palavras masculinas do que femininas na tradução de ratio:“método; disposição; plano; raciocínio...”. (TORRINHA, 1945, p. 728).3 Ver sobre método mútuo, entre outros: ALVES, 2005, cap. 5 – “O ensino mútuo e a organização do trabalhodidático”; e BASTOS, FARIA FILHO, 19995Dados esses pressupostos no âmbito do geral, vamos tentar chegar ao nosso particular, queé a evolução histórica da didática em terras brasílicas, pelo menos em caráter introdutório.Nossos estudos contemplam a seguinte periodização:1. 1549-1759: a didática jesuítica em construção;2. 1759-1882: da didática pombalina do Alvará Régio de 1759 aos Pareceres de RuiBarbosa em 1882;3. 1882-1932: da didática cientificista do método intuitivo até ao Manifesto dos Pioneirosda Educação Nova;4. 1932-1996: da didática liberal-cientificista e alunocêntrica do escolanovismo, passandopela proposta histórico-crítica e pela crise do programacionismo e chegando aoconstrutivismo, até à lei 9.394/96;5. a didática individualista vinculada à “pedagogia das competências”, de 1996 aos diasatuais.1. 1549-1759 – A didática jesuítica domina esse período na colônia americana de Portugal.A educação proporcionada pelos inacianos foi de longe a que marcou esse tempo. Semembargo da participação de outras ordens, principalmente da franciscana e da beneditina, aCompanhia de Jesus foi a preponderante, pelo seu caráter sistemático, pela extensão de suacobertura e pelo arrimo que lhe dava a Coroa (através da redízima, ou seja, a dízima – 10%- da dízima, que era o imposto colonial). No que tange à extensão, segundo Fernando deAzevedo, em 1759, ano de sua expulsão, os jesuítas tinham na Colônia “25 residências, 36missões e 17 colégios e seminários, sem contar os seminários menores e as escolas de ler eescrever, instaladas em quase todas as aldeias e povoações onde existiam casas daCompanhia” (AZEVEDO, 1963, P. 539). O Ratio, decretado em 1599 em sua versãodefinitiva, era o organizador de toda essa atividade. Antes dele houve o período que LuísAlves de Mattos (1958) denominou de “heróico”, marcado pelo plano de Nóbrega (1549-1570). Mas, além de não ter sido duradouro, o plano de Nóbrega conviveu com outrasorientações didático-pedagógicas, consubstanciadas no chamado modus parisiensis,originário da Universidade de Paris e posto em vigor em diversos colégios europeus naprimeira metade do século XVI. Demais disso, mesmo antes de sua decretação definitiva, oRatio conheceu versões preliminares que circularam nas diversas províncias da ordem,sendo que a de 1591 foi nelas posta em prática. Há que se considerar também que havia as6disposições sobre o método pedagógico contidas na quarta parte das Constituições, vigentesdesde 1552. “Nela traçara o fundador as linhas mestras da organização didática e sobretudosublinhara o espírito que deveria animar toda a atividade pedagógica da Ordem”(FRANCA, 1952, p. 16). Também no Ratio a metodologia é nuclear. Leonel Franca diz queela é “a parte mais interessante e mais desenvolvida do Ratio” (id., ibid., p. 56). E pormetodologia são entendidos “tanto os processos didáticos adotados para a transmissão deconhecimentos quanto os estímulos pedagógicos...” (id., ibid., p. 56).No sistema didático do Ratio a preleção – prelectio – era central. A palavra diz tudo: prélição,aquilo que vem antes da leitura, a “lição antecipada” no dizer de Leonel Franca. Oprofessor explicava todas as dificuldades do autor e do texto que os alunos iriam estudar.Aquilo que hoje chamamos “o contexto”, vale dizer, a realidade exterior ao texto e que ocondiciona, era passado aos alunos sob a denominação de erudição – eruditio – que, porém,não tem nada a ver com o conhecimento pedante que hoje o termo conota. “Sob este nomecompreendem-se as noções de história, geografia, mitologia, etnologia, arqueologia einstituições da antiguidade greco-romana que podem elucidar o sentido do trechoanalisado” (id., ibid., p. 57). A preleção era seguida do trabalho do aluno, a composição. Osalunos deveriam compor textos, tomando como “modelo” o autor clássico que estavaestudando. Isso era a imitatio, a imitação. Embora Leonel Franca exagere a participação dosalunos e chegue a dizer que a didática jesuítica implicava um método ativo, o que eracompreensível pois esse autor tinha por interlocutores os escolanovistas que exaltavam oativismo, o certo é que os estudantes tinham uma parte importante no processo. Não erammeros decoradores de texto, apesar de que as aulas começassem pela recitação de cor de umtrecho latino em prosa ou verso. Pode dizer-se que a memória desempenhava um papel nãonegligenciável na didática jesuítica. Na sua participação, os alunos punham-se em disputa,opondo-se decuriões e censores. Os castigos não foram abolidos, mas suavizados: ubiverba valent ibi verbera non dare, “onde as palavras têm força não deve ser aplicada apalmatória”. Os prêmios eram um estímulo considerável nessa metodologia. Também talfato se compreende na lógica de uma sociedade em que a burguesia era ascendente e ondeos valores do mérito pessoal deveriam sobrepujar os do nascimento, sendo por issopremiados.

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